segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Oratório de Ascensão ou "Himmelfahrtsoratorium"

Hoje, num bater preciso, apareceu-me um senhor à porta, razoavelmente enfarpelado, fato cinzento, vinco, mas infelizmente de calça curta, escapando-se talvez ao sapato de berloques castanho reluz. Razoavelmente falante para lá do tique no olho esquerdo, num deles, creio eu, ofereceu-me a possibilidade de compra de um “Homicídio de carácter” luxuosamente encaixotado. Não uma “Tentativa de homicídio de carácter”, explicou - edições de bolso de grande produção que não atingem o regozijo de um finíssimo cliente como eu - mas um raríssimo efectivo, garantidamente transitado, comprovadamente capaz de assassinar.
Então e a caixa, o que lá tinha, que notoriamente não cabia num bolso e muito provavelmente me deixaria sem arrumo? Ora foi por aí que a conversa se fez maior. Lá dentro haveria todo um sistema intrincado de peças capazes de montar um atentado competente à coisa do espírito e que depois de assemblado se tornaria num pequeníssimo insecto, ágil e operador de veneno letal; e tudo perfeitamente explicado no libreto. Sim libreto! A coisa trazia-o, recortando o móbil, a carne, a trama espiralada que tão operática geringonça seria capaz de interpretar certamente. Simples na montagem como seria de esperar, fácil de operar, a manobra de todos os processos necessários a bem assassinar o carácter do outro tornar-se-ia prazer - uma estampa de satisfação e dias há, premência do homem.
Uma primeira impressão a reter era a possibilidade de operar em modos diversos, entre os quais, destacados seriam, o modo individual, para operações muito direccionadas e de grande precisão e o modo colectivo, para o qual seria necessário solicitar a versão Premium, e que muito jeito tem dado às nações modernas, possibilitando a premente necessidade de instrução dos povos; a cada vez mais urgente formação de  especialistas; a revelação dos palácios do mundo aos bois pasmados, sem no entanto provocar, aos respectivos carácteres, reacções alérgicas à mediocridade das vontades, essa ilustre daninha que tanto grassou nos prados da indiferença politica das consciências e que releva de dominar os destinos a cada mascar dos ruminantes.
Mas não era tudo, conseguira o senhor recolher-me a atenção e eu era de momento o próprio corpo da curiosidade. Tinha qualquer coisa de oficial da colónia penitenciária pela forma como apaixonadamente descrevia as funções e competência do dispositivo, a mim, tornado por magia num explorador estrangeiro surpreendido em casa e entretanto caído, de joelhos, pelo trejeito desse esqueleto amaldiçoado que era já o Homem. E como tudo isto era digno de contemplar. Pedi-lhe que continuasse, que não ligasse à vizinha do primeiro andar que entretanto passara com o José, um bonobo macho que recorrentemente vestia de princesa. E ele continuou. Montado numa ênfase aguda sugerida pelas mãos, maestro do tropel avassalador de uma manada enlouquecida de adjectivos e assobios asmáticos, revelou-me que tudo funcionava melhor com a oferta de uns quantos Plug-ins que muito melhoravam a performance desta já de si irrepetível maquineta.
Assim, o estojo completo de “Espionagem Politica” trazia um mundo dentro: os manuais de procedimentos, os gadgets e devices da mais sofisticada tecnologia, os bigodes postiços e óculos de massa, os equipamentos de escuta - búzios que escutados revelavam mares de baba, de escândalo -, o compilador binário de soundbytes que depois de devidamente aparafusado à engrenagem mãe, estaria compelido a debitar filtros de dúvida e engano sobre a conduta do visado, mesmo que da conduta deste mais não resultasse senão dúvida e engano. E isto era evidentemente fundamental, advertiu. Se o visado já sobrevive para além da escancarada manifestação da sua própria imundice, então apenas resta acoplar a paleta de ferramentas de edição para devolver novos gradiantes ao enredo; enfatizar o que já se desconfiava; sublinhar o que já não se tinha em conta. Bem me fez perceber, o senhor, com a calça ainda demasiado curta e os berloques convulsos, que o processo era mais ou menos subtil mas sempre integrado e persistente.
Éramos já dois compinchas, adolescentemente sentados nos degraus da escada - eu, tentado a equilibrar o chinelo com os dedos dos pés, ele, debitando fagulhas de operação entre dentadas assertivas no pão com manteiga que por ora lhe propusera. Não havia como não adquirir esta colectânea do assassinato que para meu boquiaberto espasmo, trazia ainda um controlo remoto - nano coisa feita de cordéis estreitíssimos, concebida especificamente para o telecomando dos Média, dos Midi, dos Hi-Fi, dos HDMI e das frequências do comentário político. Neste sentido, o senhor, um amigo regressado do futuro, ao meu dispor, alertou-me para a extrema importância de bem gerir e controlar a informação. O que até então vinha sendo feito de uma forma familiar ou com o esforço cúmplice de alguns amigos, tornara-se efusão maquinal do hábito e desta história de repetição decaíra a criatura de um esquema preciso, de trâmites se bem que contorcidos, cientes da sua transversalidade; e era preciso negociar participação nesta onda que tudo permeia e infecta. O eficaz aniquilamento do carácter visado não atinge resolução enquanto ausente dos ecrãs, enquanto anónimo ao desdito do texto impresso ou projectado.
"Vamos então imaginar que não lhe dá muito jeito assassinar o carácter de outrem", disse-me com gravidade. Nesse caso, de que serve a potência deste utensílio precursor do “crime perfeito”, capaz de multiplicar os ecrãs até ao Nada? Estávamos agora nas margens de um rio de escuridão; e o meu peito oprimido pela possibilidade de não resposta a tamanha interrogação, como se o fantasma do mundo, vestido de significado e significante, pudesse num trago, padecer de real e ausentar-se pelo nu. Nesse caso… também não haveria qualquer preocupação. Investido de luz solene, o senhor, nesta altura já um qualquer tio perecido nas entranhas da guerra colonial, retirou do extenso caixote o kit “Campanha negra”, dotado de um emulador capaz de converter todo o mecanismo num fantástico e poderoso “Estou a ser vítima de homicídio de carácter”, também esta configuração capaz de excelente desempenho com a inclusão de extras tais como um escape com ponteira de competição, um transdutor piezoelétrico de ratereres e um saquinho com senhores muito pequeninos lá dentro, voluntariosamente prontos para tomar parte na pândega, na laboriosa defesa do carácter moribundo.
Que portento da conversibilidade!, esta sequela de caixa de Pandora, mas com menos e mais seguras opções. Um electrodoméstico da vida e para a vida!
Perante o meu ataque de epilepsia, o senhor, que neste momento se chamava Dolores, propôs-me um desconto insano se, previsivelmente, optasse pela modalidade de pagamento B23-H que estabelecia um programa de crédito de matriz evolucionária - verme parasitário, mas absolutamente benigno, inoculado no genoma dos potenciais geradores de gerações, de forma a forçar a sua própria selecção e assim se perpetuar para lá do horizonte metafísico. E somente sofria de um ligeiro acréscimo, este brilhante pacote de pagamento, especificamente dirigido a indivíduos e a outros exemplares, devido à taxa de “donativo partidário”, que sendo uma obrigatoriedade processual, permitiria no entanto, num futuro próximo, mais-valias consideráveis ao nível da construção civil.
Mas não, que não me tentasse mais este desincrustante visitador galáctico dos mais pobres espíritos, com a promessa de luxuriantes recompensas a cada homicídio, a cada fratricídio, a cada bem dissimulado genocídio de carácteres, que eu não mais podia resistir.
E foi, ainda me ocorrem lágrimas assim o penso, quando fui tomado pela aparição da mesinha de cabeceira que outrora fora pertença da tia Felisbela e que encastrada num magnifico e flutuante retábulo a ouro e rubis, reluzindo luz celestial e deixando escapar uma harmonia ligeiramente disco, me confiou dois ou três segredos, os quais evidentemente não vou revelar em tempo útil de salvar a vida humana no planeta. Em todo o caso, antes de partir multiverso fora, estavam já dois anjinhos idosos, de fraldas e cornetas douradas, a correr as cortinas da Membrana, deixou-me uma caixinha que me disse ser um fabuloso conjunto de robalos; e somente isso fez-me naquele momento um idoso reformado, feliz de tão indignado que estava.
Depois, a vida era já outra no momento em que desenhei a minha condição insolvente num pedaço de fé ressequida e com um gesto largo a coloquei, juntamente com um vale desconto até dez cêntimos por litro de combustível, na lapela do senhor. Este, com os olhos embargados e perpassando faíscas da sua alma de cavala escalada com batatas a murro, despediu-se cordialmente e depois de me fazer chichi no tapete bateu asas para todo o sempre.